quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Cebola

Era a primeira vez que iria utilizar o conhecimento que aprendera com a filha de um pai que já se foi, mas ainda rege muitos dos passos dados. “É preciso respeitar as camadas da cebola”, e assim foi feito. Primeiro ao meio; aquela faca tetânica deslizava sem dificuldade por uma de suas linhas levemente esverdeadas. Depois de observar as duas metades igualmente definidas repetiu o ato. Aquele quarteto distribuía-se em cima do prato amarelado de uma forma tão isonômica que clamava por contemplação. Seus olhos fitavam trêmulos aquele quadro, e a contemplação tornou-se a doce forma de adiar as lágrimas que viriam do ardor, enxofre-vapor, que a esperava.
Para distrair-se dos pensamentos sobre os aracnídeos que, com certeza, habitam o interior das panelas daquela cozinha sujo-imunda pegou a tábua de madeira sofrida e descascada pelo martelo ferino de carne, colocou sobre ela um dos quatro pedaços daquela raiz tão saborosa. Pensou em escolher um nome singular, havia ficado admirada com toda a beleza daquela domesticidade.
Rente ao dedo, os movimentos de subida e decida daquela cerra desmantelavam a cebola em fatias que beiravam o invisível.
Naquela cozinha quente-abafada consumia-se em nervos, pois depois de ter coberto o seu corpo com a água da bica, a última coisa que queria era sentir-se molhar em suor.
No decorrer do movimento da faca observou o liquido que escorria do tempero e era absorvido pela madeira. Percebeu então a sintonia atenuante entre aqueles dois objetos da natureza. Na mesma velocidade que seu corpo esquentava e derretia a, cebola se consumia em suor. Suor esse que certamente não adivinha do calor nem muito menos da ansiosidade decorrente de uma duvida: será que ela seria bem preparada para agradar certas papilas gustativas? (a cozinheira apesar de enxergar a beleza do ato, desacreditava na benevolência da cebola). Suor esse que, provavelmente, decorria do desespero que sentia ao perceber sua existência despedaçar-se, sabe-se lá para que.
Na medida em que o cheiro de limpeza da menina ia embora sendo substituído pelo odor decorrente do suor, a cebola exalava aquele seu hálito característico que provoca tanto temor.
Os olhos dela já marejados ardiam e fecharam-se, por um momento o porquê e a beleza do chorar ao cortar cebola foi compreendido no seu mais fino sentido. Ficou encantada com a capacidade que aquele vegetal tinha em condensar toda a sua tristeza naquele vapor.
O sofrimento da cebola foi tanto que seus olhos ainda fechados queimavam. Levantou da cadeira bruscamente, debruçou-se na pia e deixou a água corrente passar por entre seus dedos para que os olhos pudessem tocar.
Nada podia fazer, o ardor e a agonia tornaram-se insuportáveis. Foi na exatidão desse instante que a dor da cebola tornou-se sua, lágrimas correram pelo seu rosto até encontrarem o ralo.

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